"Sem Título há 20 anos" de João Garcia Miguel - Até 23.Dez.2008
A Perve Galeria inaugurou no passado dia 15 de Novembro a exposição "Sem Título há 20 Anos" que reúne trabalhos de João Garcia Miguel realizados entre 1988 e a actualidade. A mostra, comissariada por Carlos Cabral Nunes, vai manter-se até dia 23 de Dezembro e constitui a mais recente apresentação pública de uma obra pictórica ampla e muito peculiar que ilustra um vigoroso período de criação artística de João Garcia Miguel, que conta com trabalho amplamente reconhecido no domínio da encenação e performance teatral mas pode aqui ser revisitado à luz de um outro olhar, o das artes plásticas.
A exposição possibilita, assim, um reencontro do artista com o público, uma vez que no fim dos anos 80, durante o seu percurso académico na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, João Garcia Miguel realizou várias exposições a que, depois, não deu muita continuidade por, precisamente, se ter envolvido mais directamente com as artes do espectáculo.
"Sem Título há 20 Anos" é, pois, a redescoberta de uma figura prodigiosa, cuja obra plástica se tem mantido largamente ocultada. Encontram-se em exposição 63 obras, que se enquadram nos períodos compreendidos entre 1988-1992 e 2000-2008, divididas em 4 núcleos distintos. Apresentam-se obras de grande e pequeno formato, em papel e em tela, com preponderância de técnicas mistas onde a tinta acrílica assume, não obstante, especial relevância e são mostradas, também, pinturas digitais animadas em computador, realizadas no âmbito da peça teatral "As Criadas" (de Jean Genet) levada à cena no Centro Cultural de Belém em Setembro passado.
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Sem título há 20 anos
As obras que apresento têm histórias contidas nelas que falam por si mesmo sem a minha vontade, sem o meu consentimento. São obras que atravessam vinte anos de actividade onde se incluem muitos silêncios e ausências. A colocação dos títulos apenas aconteceu agora que me decidi a apresentá-las em público. Daí vem o título da exposição. Vou acumulando trabalhos sem a preocupação de lhes dar uma continuidade e uma finalidade. Acabo por os deixar em suspenso à espera de oportunidade de serem vistos por um leque mais alargado de pessoas e na maior parte dos casos perco a noção do que fui realizando e acabo por esquecer os locais que percorri. Neste sentido são uma suspensão oposta à suspensão de uma peça teatral que se suspende durante a representação e se esvai logo após o terminar. Aqui a suspensão desaparece após a exposição e o dar um título a cada um destes trabalhos. Ao dar-lhes um título fixei-os e deixei-os cair dessa suspensão em que se encontravam revelando-os dando-lhes um peso e uma porta por onde saíram. Olhar para estes trabalhos é olhar para um futuro no passado. Para outro eu que fui e que já não sou. Um outro eu que quis chegar a um sítio qualquer e que acabou por chegar a um outro lugar fruto de sucessivos esquecimentos. Cerca de cem destes trabalhos em papel, dos quais apresento aqui cerca de metade, estiveram desaparecidos nos últimos anos até que um amigo meu os reencontrou e me devolveu parte do meu passado. Foi com um certo receio e encantamento que me confrontei com esse outro tempo da minha existência. Foi esse o ponto de partida para esta exposição que acaba por sobrevoar um período que vai desde os finais dos anos oitenta até aos dias de hoje. Este confronto parece-me interessante e é sem dúvida importante para mim.
As pinturas estão cheias de ideias que escondem outras ideias, imagens que se sobrepõem umas às outras, confusões sem fim, influências, desejos contidos e escondidos ali mesmo no papel apesar de tudo revelados. É-me visível uma tendência performativa nestes trabalhos nas caras que se desdobram, nas pequenas histórias e acções que encerram como se o quadro fosse um espaço para a narrativa caótica e tenaz por vezes muitas vezes atroz e insensível às regras e aos limites da pintura. Era tudo dizer tudo sentir tudo pensar tudo fumar tudo consumir tudo era tudo. Era bem assim. Há ainda uma outra parte da exposição que fala uma linguagem mais recente que é diferente em tudo ou quase da linguagem mais antiga. Fala sobre sobreviver e sobre sobreviventes.
Não fala grande coisa nem fala de grande coisa apenas de coisas pequenas e com pequenas coisas. É uma linguagem essencialmente perdida ou em vias de extinção. Sobre a relação entre a primeira parte da exposição e a segunda parte da exposição não há uma grande relação a não ser essa mesma: a de não terem relação nenhuma. O que é bom e é mau. É bom porque aperta o coração e é mau porque liberta os gases da inteligência e outros gases também: os gases do humor. Mas alguém veio aqui para ler este texto? Espero que não leiam nada, não vejam nada e sintam alguma coisa. Divirtam-se e bebam uns copitos. Se alguém quiser comprar um quadro também é muito bem-vindo porque se gostou leve um consigo e pode ser que tenha sorte e que a tenacidade da criatividade associada à sorte das mais-valias do mercado lhe traga um presente daqui a uns anos. Mas ninguém lhe pode garantir isso. Se lhe jurarem é mentira. Mas que pode acontecer nunca se sabe.
João Garcia Miguel – Novembro de 2008
Sobre a exposição “Sem Título há 20 anos” – à laia de intróito remissivo
O João Garcia Miguel, conhecia-o apenas e não é pouco, das performances artísticas que fui vendo ao longo dos anos, da Companhia Teatral “O Olho”, da “Peregrinação”, na Expo 98 e, mais do que tudo o resto, da memória que retive de uma sua aparição performativa aquando da exposição que a Fundação EDP montou a propósito da atribuição do Grande Prémio de Pintura ao Mário Cesariny no Museu da Cidade. Aí, recordo, o João e uma actriz deram corpo a uma intervenção artística que, julgo, não fazia parte do programa da inauguração: mostravam a quem estava e eram muitos apinhando as salas até quase à sauna, uma tela pintada a marcadores onde apenas dois seios gigantes despontavam. Pretendiam saber se haveria gente interessada em comprar a dita pintura, indagavam se teria valor e/ou qualidade. Entrevistavam quem se dispunha a falar e eu, com a minha Aurora-filha de colo ao colo, prestei-me a tal.
O João, pessoalmente, conhecia-me há pouco. Vivia, então, junto à galeria e já tínhamos conversado um par de vezes, circunstancialmente, nas suas breves visitas às exposições que aí foram sendo organizadas. Toda a conversa que ali mantivemos, em jeito de entrevista foi, pois, uma extensão da circunstancialidade que rodeava o nosso mútuo conhecimento: queria saber o que pensava, não eu mas o galerista, da obra que mostrava e o galerista foi dizendo o que é suposto dizer-se nessas situações. Despedimo-nos como sempre e em cortesia me fui dali com na cabeça mais do que uma inquietação irritativa. Até que ponto o ultraje da iniciativa performativa, pois que se tratava da consagração justa de um artista maior deste portuguesmente pequeno país, havia sido combinado com o Cesariny? Nunca o perguntei, nem ao Mário nem a ele mas sabia (e hoje tenho disso a certeza) que se tratara de um acto interventivo da exclusiva responsabilidade do João que, dessa forma, poderia querer provocar as mentes, inquietar os espíritos mas incorria também no perigo de achincalhar o artista ali formalmente, por fim, celebrado. Guardo disto uma memória viva e forte e, se aqui a refiro, é porque a pintura em si, devo confessar, longe de me entusiasmar, me provocou uma sensação de certa repulsa, talvez não, de desinteresse, também não será bem o termo, de raiva, talvez um pouco, de choque, também em certa medida, e poderia continuar sem que conseguisse, verdadeiramente, definir o que me provocou a dita tela pintada a dois ou três tons, vivos, com marcador e dois seios grandes e rijos, afirmativos irrompendo do branco virgem e imaculado do fundo. O certo é que não mais esqueci aquilo e isso me acompanhou durante estes anos. Assim foi o meu (a)caso galerístico com o João Garcia Miguel: certo dia, meses ou mais depois do insólito acontecimento, acabámos à conversa já não sei bem porquê nem a que propósito mas o certo é que daí resultou que, mais tarde, me mostrasse na sua casa em Alfama, alguns dos seus trabalhos pictóricos. Passou-se, não sei bem porque razão mas desconfio, mais ou menos o mesmo que me tinha acontecido antes: não me despertaram especial interesse mas, avisado de que poderiam inculcar-se-me sem aviso prévio na mente disse-lhe (e ele recorda ainda e mo repete várias vezes) que, se ele continuasse a trabalhar naquilo, afincadamente e, sobretudo, se se organizasse por forma a mostrar-me algo semelhante a um portefólio completo, talvez daí por três anos fosse possível e desejável fazermos algo em conjunto. Trabalharmos.
Muitos dos mais resistentes, sei-o bem por experiência acumulada de anos, desistem antes que dois Entrudos se esfumem por entre os fogos-de-artifício do costume e as enxaquecas da manhã seguinte mas, isso não o sabia na época, o João é feito de outra massa e eu, se calha e às vezes, também.
Pelo meio, de passagem por Brácara Augusta, ainda fui surpreendido com uma exposição interventiva, papeis colados na parede com pintura caligráfica de tipo Zen numa galeria alternativa local, de que não recordo o nome, onde o João, melhor dizendo, a sua obra se mostrava noutros tons e formas.
Surpreendia-me novamente. Depois, num dia qualquer, acabei dizendo-lhe isso, da exposição vista em Braga e, para meu espanto, retorquiu-me que haviam passado os tais 3 anos e já me podia entregar a tal compilação artística.
Mandou e mentiu, sem que o fizesse intencionalmente ou sequer pudesse imaginar. Os trabalhos que me mostrava eram, sim, interessantes, pois havia já não neles, em mim, a margem de progressão feita a partir da acuidade do olhar que fui tendo para as surpresas que elas me podiam reservar, na percepção da singularidade discursiva, da matéria feita caos, dos processos enraivecidos e das tintas em amálgama profusamente misturadas, cuspidas quase em torrente ou semi-vómito, regurgitadas como que num frenesim de vida intensa e respeitosamente crua. Mas havia algo ainda que sentia faltar, acreditem ou não. Algo que ali não estava mas lhe sentia a ausência, como se de um corpo de pessoa, retirada de um lugar que lhe conserva o cheiro, se tratasse.
Ainda assim, sem o dizer, sequer formalizar mentalmente, não obstante esse estranho sentido que me levava inquieto, sendo as obras generosas, em qualidade e quantidade, decidi-me a propor-lhe avançarmos para uma estreiteza de laços artístico-laborais e, daí, partimos para esta exposição, ainda (e sempre, pelos vistos) sem título.
Foi sem surpresa, apesar da euforia (que quis manter contida para não assustar o autor) com que me apressei a vê-los, que um dia acolhi a notícia de que tinham sido descobertos papeis tintados que datavam de há 20 anos. Ali estava, adentrando em mim, o corpo que faltava para que a família, que o João alberga, sinto-o, se pudesse reunir, celebrando-lhe o regresso à pintura exposta em sala. Outro que fosse e eu facilmente pensaria que se tratara de um logro: as pinturas estavam escondidas em vez de desaparecidas/esquecidas. No (o)caso do João isso não pode nem ser nem fazer parte. Ele é assim. Uma força da natureza em ebulição que, presa de se transformar continuamente se esquece a cada dia de quem foi, para se renovar. O seu compromisso, a haver, é sempre com o amanhã e isso, longe de mau, é algo de admirável e para o qual, espero, haver cálice suficientemente grande que comporte o liquido que, fazendo-lhe justiça, permita saudá-lo como se devem saudar sempre os “barqueiros da madrugada” (expressão que pego emprestada do poema “Aos meus camaradas”, de Fernando Grade, por me parecer vir aqui mesmo a propósito).
Carlos Cabral Nunes – Curadoria da exposição – Novembro de 2008